Uma esquina de flores e sons
Na frenética dança cotidiana da Cidade Maravilhosa dos anos 60, havia vidas que passavam despercebidas, como personagens secundários de uma trama social que ninguém parava para contemplar. Eram as vidas daqueles que ninguém via, as histórias silenciadas pelos ruídos da pressa e pela indiferença social, instalada com a modernidade cega nas esquinas urbanas.
Lembro-me de que, quando criança, costumava caminhar pelas taciturnas ruas do velho bairro do Estácio, prestando muita atenção nas esquinas. Não só pelo pavor do desconhecido – já havia comunidades pobres àquela altura –, mas também pelos riscos invisíveis da desigualdade. Entretanto, como um menino curioso que eu era, também me encantava perceber as almas daquelas casas mal construídas.
Num canto esquecido pela correria, vivia Dona Ana, uma senhora portuguesa de cabelos brancos e olhar triste. Seu endereço modesto, escondido entre prédios da Rua Hadock Lobo, era um universo à parte para mim. As crianças me diziam que ali morava uma bruxa, mas me tocava ver as flores que desabrochavam timidamente de suas janelas, enquanto todos que ali passavam pareciam imunes à beleza contida naquela simplicidade.
Dona Ana gastava seus dias cultivando, não apenas flores, mas também memórias. Do alto do muro do Colégio Guanabarense, onde eu escalava para contemplar a vida, me esforçava para espreitar furtivamente sua sala, e me pegava querendo descobrir o que teria feito aquela senhora tão só.
Aquele ambiente me parecia um museu a céu aberto, repleto de fotos antigas e cartas amareladas pelo tempo, espalhadas sobre uma enorme mesa. Cada objeto teimava em contar uma parte de sua própria história, uma narrativa que se entrelaçava com a trama de sua vida.
Ao lado, no prédio mais elegante da rua, vivia Carlos, um jovem músico cujas notas melodiosas reverberavam nos corredores do edifício. O violino, seu cúmplice na solidão urbana, era sua voz, uma tentativa de se fazer ouvir em meio ao barulho do cotidiano.
Suas apresentações eram invariavelmente para as paredes que o cercavam, e a plateia imaginária era formada por vizinhos enfadados pela luta da sobrevivência, sempre com as portas de seus apartamentos trancadas.
Minha curiosidade me levava aos corredores do edifício, onde, sentado nas escadas, passava horas imaginando o que ele fazia dentro daquele cárcere voluntário. Reza a lenda que era um jovem muito gordo e alto, pois ninguém jamais o viu caminhando nas ruas.
Até mesmo o porteiro José, um nordestino esperto, que trazia consigo um sotaque peculiar, e sempre encantava as crianças do prédio com histórias mirabolantes dos personagens que ali habitavam, repetia que aquele morador nunca recebera qualquer visita desde que ele iniciara o trabalho naquele condomínio.
Nas noites quentes do verão, eu vislumbrava saraus, com aquela figura imaginária ao centro da roda, sendo admirado por todos, tocando as modinhas alegres do Carnaval carioca.
Seu violino nunca tocou uma única nota em ritmo alegre, mas eu nutria o desejo de interpretar suas melodias como frases de felicidade, embora não tivesse uma única evidência de que esse estado de espírito estivesse contido naquelas lamúrias.
Já na esquina oposta, Seu João, um vendedor ambulante, estendia sua barraca de frutas, oferecendo cores e sabores a quem passava apressado. Seu semblante marcado pelo tempo contava histórias de batalhas enfrentadas nas ruas da vida. Ele conhecia os nomes e os gostos de seus clientes regulares, mas para a maioria, era apenas um vulto colorido entre tantos outros.
No entanto, essas vidas que ninguém via, eram as que sustentavam o tecido invisível, e uniam os habitantes daquele bairro. Eram como fios sutis que costuravam a trama, tornando-a mais rica e complexa, os guardiões de memórias, os contadores de histórias silenciosas, artistas despercebidos que contribuíam para a sinfonia caótica da vida urbana.
Talvez, em algum momento, aquelas vidas que ninguém via se tornariam visíveis, e a cidade descobriria que a beleza poderia ser encontrada nos detalhes esquecidos, nos rostos anônimos que compunham sua paisagem.
Dona Ana continuou a cultivar suas flores, Carlos a tocar seu violino solitário, e Seu João a oferecer suas frutas a quem quisesse parar por um instante.
Só hoje consigo entender que eles forneciam a energia do farol que ilumina o caminho para uma compreensão mais profunda da humanidade, onde cada vida, por mais discreta que seja, tem seu papel vital na sinfonia do universo.
* Publicado no livro de coletâneas " As vidas que ninguém vê" (Editora Metamorfose)
https://www.editorametamorfose.com.br/1056877/as-vidas-que-ninguem-ve


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