O verbo divino

Já passava das dez da noite da antevéspera de Natal, e Cinara ainda estava no escritório. Ela era uma pessoa viciada em trabalho ou, “Workaholic” como costumam chamar os especialistas. Vinda de uma família só de mulheres do interior de São Paulo, preenchia seu vazio afetivo ocupando-se com as tarefas intermináveis do trabalho.
Ficar longas horas em seu apartamento, onde só tinha a companhia da cadelinha Nina, lhe causava imenso desconforto. Cinara ainda se recuperava de uma cirurgia cerebral que a salvara de um derrame, dado um grave aneurisma cerebral que se rompeu, o que traria para ela consequências imprevisíveis mesmo em plena juventude.
Embora estivesse debulhando uma infinidade de planilhas e propostas comerciais no seu notebook, Cinara não conseguia parar de pensar na notícia que escutou pela manhã no radio, durante seu trajeto para o escritório. Aquilo havia lhe impressionado ainda mais por se tratar do endereço em frente de onde morava.
— Uma motocicleta pegou fogo após colidir com poste no início da manhã de hoje aqui em São Paulo. Segundo o Corpo de Bombeiros, o acidente ocorreu por volta das 6h45 na altura do número 231 da rua Verbo Divino, no bairro Santo Amaro, zona sul da cidade. O impacto foi tão forte que espalhou vários objetos que estavam com o condutor. O motociclista foi socorrido pelo SAMU e levado para o hospital. Não há informações sobre o estado de saúde da vítima.
Ela praticamente testemunhara o acidente, no momento que passou em frente a cena teve seu olhar capturado pelo olhar em súplica do rapaz que se acidentara. Não conseguiu deixar de lembrar dele durante todo o dia, pensando sempre que aquela visão lhe era familiar. E o som ambiente do rádio com aquela notícia sendo repetida pelo menos uma vez a cada hora, não lhe permitia se concentrar no trabalho.
Sentia uma dor de cabeça que não lhe abandonava desde a hora que despertou, não importando quantos comprimidos analgésicos ela tomasse, a dor persistia. Aquela sensação de uma faca cortando seus miolos estava lhe dilacerando, entretanto, o olhar daquele rapaz agonizando em meio a uma enorme poça de sangue lhe reconfortava. Cinara já estava se sentindo culpada por estar percebendo em si um sentimento mórbido de conforto emocional oriundo de uma situação tão desesperadora.
Quanto mais tentava prestar atenção as tarefas do trabalho, mais fortemente sentia aquela sensação de conhecê-lo, pensou até na possibilidade de amá-lo, tal era sua confusão mental. Estava com a visão turva e sentindo um perfume estranho, no entanto, começou a sentir sua mão tocar o rosto dele e o conforto do seu abraço envolvendo seu corpo.
Ele a olhou bem no fundo dos seus olhos, estendeu sua mão e a levou para um lugar onde nunca mais sentiria o medo da solidão. Um alívio para a dor que já cedia, e se puseram a contemplar um lago de águas transparentes, onde os peixes voavam e os pássaros nadavam.
As nuvens ali eram só porções de algodão onde se podia deitar para olhar a vida passar, com idas e vindas, com amor e ódio, mas acima de tudo com muito amor e paz.

This article was updated on 29 outubro 2023

Holbein Menezes

Holbein Menezes é carioca, engenheiro, pós-graduado em engenharia econômica e mestre em administração, forjou sua atuação em 40 anos de trabalho na indústria do entretenimento.

Filho de um escritor de romances policiais e uma premiada artista plástica surrealista, sobrinho de um ganhador do Jabuti (1972), descobriu na literatura uma forma de expressão artística e um vínculo com as suas origens familiares.

Dois livros individuais publicados, "As sombras do Alentejo: O vinho e o destino" e "Rumo ao Horizonte: Uma jornada de despedida", além da participação nas coletâneas da editora Metamorfose: "As vidas que ninguém vê" e "Contos do mar".

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