O Pescador de ilusão
Fazia mais de dez anos que Antônio não via o pai. Por desentendimentos relacionados à herança deixada por sua mãe, se afastaram e pararam de se procurar, e a aquela relação muito carinhosa do passado ficou adormecida.
Filho caçula, foi privilegiado na sua criação, principalmente por ter desfrutado de pais maduros, que puderam ser complacentes com sua educação. Já sua irmã não teve o mesmo privilégio, não por rejeição, mas devido à fase da vida que os pais viviam.
O Pai de Antônio, seu João, todas as noites, quando eram pequenos, colocava-os para dormir contando histórias mirabolantes que invariavelmente envolviam aventuras no mar, parecendo contos de personagens saídos de livros de ficção, adaptadas ao seu cotidiano. Aliás, todos no bairro o conheciam pela alcunha de "Peixe Frito".
Seu apelido advinha da história mais famosa, que ele repetia a quem estivesse por perto, versando sobre sua sobrevivência após um afogamento na praia de Botafogo. Segundo seu João, um peixe o trouxe de volta à beira da praia e, comovido pela sua bravura, se sacrificou para sua sobrevivência, cedendo o próprio coração para um transplante.
Como um exímio contador de "causos", ele hipnotizava todos que o escutavam. Prestavam atenção às suas histórias em silêncio e, eventualmente, riam alto com cada desfecho contado com muita emoção.
A notícia da morte do pai fez Antônio regressar ao Brasil para participar das cerimônias fúnebres. Desejava não vir, mas cedeu aos apelos de sua irmã, que estava arrasada com a perda do pai.
Deixou sua família na Áustria, onde era um engenheiro bem-sucedido. No entanto, naquele dia em especial, passou todo o trajeto lembrando da sua infância, do seu pai deitado com ele na rede, repetindo pela enésima vez sua história preferida: sua ressurreição!
Ecoava em sua mente, repetidamente, a memória daquela história ridícula. Mesmo dentro do avião, revivia cada frase que o pai lhe contava e cada diálogo mantido com ele a cada desfecho.
Embora fosse completamente inverossímil, essa memória afetiva forjou a imagem que mantinha do pai, como um ser incomparável, um super-homem, que a tudo podia, por ter um coração transmutado de peixe. Era imortal no seu inconsciente.
A história sempre começava com a narração do cenário macabro da tal noite:
— As ondas batiam com força contra o casco do meu pequeno barco de madeira, fazendo-o balançar como uma folha à deriva.
O céu estava nublado, e o vento salgado soprava ferozmente, desafiando minhas tentativas de domar o oceano tumultuado.
— Mas pai, a praia de Botafogo não tem onda!
Antônio, todas as vezes interrompia o pai nesse trecho, e, olhando a criança abraçada à sua mãe que se sentava na poltrona ao lado, voltava ao seu transe, que o levou a reviver o detalhe.
Sem dar atenção às palavras do filho, mas com um olhar cativante, João sempre prosseguia:
— Eu estava a bordo, com meus cabelos desgrenhados e minhas mãos calejadas. Estava determinado a enfrentar as águas revoltas em busca do peixe que brilhava como vaga-lume.
João não era um pescador experiente, mas gostava de dizer que sua vida era entrelaçada com as marés e os segredos do mar.
Alegava que na noite em que transcorria o fato, ele ouvira no rádio uma reportagem sobre uma criatura colossal que nadava nas profundezas, um peixe que desafiava qualquer imaginação, e que era conhecido por escapar até mesmo dos pescadores mais habilidosos. Antônio o imaginava como um peixe alado.
O pai prosseguia, quase obedecendo a um roteiro de filme:
— Reza a lenda que a captura desse peixe traria sorte e prosperidade àquele que fosse corajoso o suficiente para desafiá-lo.
Eu estava determinado a alcançar a glória que a lenda prometia e lancei as redes no ponto exato onde a criatura mítica costumava ser avistada.
Meu barco dançava sobre as ondas, e minhas mãos trabalhavam com destreza, guiando as cordas. Eu parecia um maestro conduzindo uma sinfonia, o que assustava todos os peixes ao redor do meu barco. Mas minha missão era a captura do peixe lendário.
Nesse momento, João sempre dava uma piscadela para o filho, descortinando um sorriso no canto da boca:
— Toninho, o mar não é um adversário fácil de ser conquistado. O vento aumentou e soprava na minha direção. O barco continuava sua batalha contra a fúria do oceano.
De repente, com meus olhos fixos no horizonte, vi o peixe lendário à espreita.
Abruptamente, uma sombra escura abaixo da superfície me deu calafrios. O peixe lendário estava ali, tão imponente quanto as histórias sugeriam.
A descrição da batalha era o momento épico da narrativa:
— Eu lutava contra todas as forças da natureza, que dançavam ao meu redor num ritmo caótico. Fui então envolvido pelo mar, e comecei a me sentir como parte do oceano, lutando contra um gigante que guardava seus segredos nas profundezas.
A luta rocambolesca entre o homem e a criatura lendária, com as ondas como testemunhas silenciosas, era a parte que a todos encantava. Com riqueza de detalhes, João descrevia sua conexão com o mar, que encharcava sua alma, lhe preenchendo os pulmões:
— No final, antes de eu perder a consciência, após uma luta árdua, o peixe lendário me contou um segredo, o qual só poderia ser revelado no dia da minha morte.
Nesse momento, Antônio sempre ficava em êxtase, pulando no colo do pai, implorando que revelasse o segredo. Ele imaginava sua conquista com uma mistura de admiração e respeito. Afinal, quem já enfrentara as forças do oceano e emergira triunfante, tornando-se um homem que, por um breve momento, tornou-se parte do mar?
Quando o avião pousou em seu destino, sua irmã o esperava no aeroporto, com uma caixinha metálica nas mãos que continham as cinzas dos seus pais. Lágrimas correram no rosto dos irmãos, que se abraçaram carinhosamente, e sem trocar palavras, dirigiram-se à saída.
Naquele instante, Antônio lembrou de seu filho e pensou em como poderia descrever para ele como tinha sido importante seu avô, com quem nunca convivera.
Tomou um táxi com a irmã, dirigindo-se à zona sul da cidade, e na beira do mar, na praia de Botafogo, esperaram o pôr do sol para despejar as cinzas do velho João de volta a sua casa preferida.
* Publicado no livro de coletâneas " Contos do Mar" (Editora Metamorfose)
https://editorametamorfose.com.br/1056878/contos-do-mar


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