O mundo visto por trás das cortinas.

O acaso sempre é um divisor de águas em nossas vidas, por mais que desejemos racionalizar retrospectivamente. É muito confortável projetar o nosso futuro com base em parcimoniosas revisões do nosso passado, assim como é animador e reconfortante encontrar justificativas “idôneas” que nos garanta menos um dia de culpa. Freud saberia explicar esse processo.
Fui criado em um ambiente criativo. Minha mãe, artista plástica, nutria em mim um eterno sonho de conhecer as obras dos artistas surrealistas que expunham seus trabalhos nos mais renomados museus europeus. Julgo mesmo que por folhear em sua companhia os livros sobre as vidas de Picasso, Miró, e Dalí, ela pavimentava na minha alma o caminho para missões sonhadoras de uma vida nas cercanias do Louvre, tocando as músicas latinas que eu tanto praticava, semelhante às almas desgarradas que eu contemplava naquelas fotos dos livros.
Mas com o acaso desempenhando o seu mais sublime papel, fui colocado no caminho do mundo do entretenimento, não como um ilusionista de humores e emoções como fazem os artistas, o que era meu sonho, mas como um intransigente técnico em eletrônica que a tudo consertava nas entranhas daquela rede de televisão mais assistida do país, onde eu só era necessário quando o show não conseguia prosseguir.
Passados quarenta anos, ainda me lembro com lucidez dos primeiros dias participando daquele mundo de sonhos fabricados com esmero, que a todos encantava pelas novelas da televisão, ou quando escutavam suas músicas preferidas no rádio, quando viam uma peça de teatro ou por somente cruzar com os artistas nas esquinas. Hoje me dou conta que sempre fez parte do inconsciente coletivo saber como era aquele mundo da fantasia visto por dentro.
Porém, visto de dentro, aquele mundo era menos exuberante e repleto de armadilhas, ainda que também propiciasse momentos divertidos. Um paradoxo, mas era o multiverso da realidade dos mortais, em que um pai zeloso, se soubesse o que lá acontecia, jamais sonharia submeter seus filhos àquela doutrina artística que muitas famílias projetavam para seus pimpolhos.
Conheci gente, muita gente, que deixava sua identidade pelo caminho no processo da construção do seu personagem, do ícone, a quem todos amavam assistir e escutar e não enxergavam o ser humano. Outros abdicavam de suas personalidades e mergulhavam no desfrute dos extremos que àquela vida propiciava, com a gratificação imediata para jornadas insanas, regadas quase sempre de muito álcool e muita droga. Meio-termo ali não havia, apenas almas criativas e sensíveis que eram usadas, trituradas e descartadas na exata proporção da demanda econômica.
Ali havia arte, sim, havia humor, sim, havia drama, sim, havia inclusive momentos de grande fraternidade, mas também havia um pernicioso esquema que impedia a formação de indivíduos autônomos, independentes, capazes de julgar e de exercer conscientemente suas escolhas. Lá, como na maioria das indústrias do entretenimento, seja no ramo musical, das artes cênicas ou da literatura, o fim é o lucro e o meio é o uso de habilidades e competências individuas para a obtenção de lucro.
Jamais esquecerei os ensinamentos do Xexeu, ele era um cara meio louco, operador de VT, que havia sumido por dois anos do seu posto de trabalho e, simplesmente, reapareceu um dia dando apenas bom dia para os colegas do departamento e assumindo o comando da sua máquina.
Ele sempre me dizia, como um mantra, que só o artesão tem o que comemorar no ambiente artístico, pois desfruta da sua liberdade num mundo em que não há o certo ou o errado, não há o bonito ou o feio, e que o bom e o ruim convivem lado a lado debochando do padrão estético imposto sei lá por quem, sei lá com qual finalidade.
É meu querido amigo, seja lá onde você estiver, quero lhe agradecer por me presentear com esses óculos que me fazem enxergar aquilo que para mim era só paisagem.


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