O CÉU ESTRELADO DE VICENTE

Aquela noite fria e nebulosa amplificava o desconforto que Vicente vinha sentindo nos últimos dias. O derrame cerebral que sofrera dias atrás, deixou duas sequelas graves, a que causava o maior desconforto era o zumbido continuo no ouvido direito. Sua já frágil saúde mental, ficou seriamente comprometida depois do evento.
Ele tinha uma personalidade singular. Oriundo de família de classe média alta, desde criança se mostrava uma pessoa séria, quieta e pensativa. Não gostava muito de se relacionar com seus colegas da escola, exceto pelo relacionamento com Paulo, que como ele, desenhava compulsivamente.
Sua professora frequentemente convocava seus pais para reuniões. O tema nunca era briga ou bagunça na escola, algo muito comum para os meninos da sua idade, mas sim sua timidez. A coordenadora pedagógica da escola alertava que ele se isolava nos cantos da sala da aula, fazendo compulsivamente desenhos, e mesmo chamado, não aceitava interagir com seus coleguinhas.
Sua mãe, dona Ana, preocupava-se muito com o filho e seu comportamento incomum. Ela teve quatro filhos, mas somente Vicente destoava, e isso era motivo de muitas discussões entre ela e o marido Téo, um pastor evangélico. Usualmente ele acusava a esposa de mimá-lo e aceitar suas manias. “Faltava uma boa surra para corrigir seu comportamento”, repetia o pai.
No final da sua adolescência, Vicente saiu de casa para tentar a vida em uma cidade vizinha. Dizia para a mãe que não queria mais ser um estorvo para a família, e que tentaria se sustentar vendendo seus desenhos em feiras de final de semana. Acreditava que estaria seguro dividindo uma casa com o amigo Paulo, que adotara o desenho e a pintura como profissão.
— Mãe, só lhe peço para não contar ao Papai. Ele nunca me perdoará por não ter seguido sua vocação religiosa.
— Meu filho querido, não vá! Eu lhe imploro!
— Mãezinha, prometo que se eu precisar de algo; eu lhe avisarei. Não chore!!
— Eu tenho medo por causa da sua saúde fraca, mas você já é adulto. Terá que jurar que vai me procurar se algo acontecer com você. Promete?
— Eu prometo, Mamãe!
Se abraçaram e se beijaram longamente, e de pronto Vicente tomou o caminho da da estação ferroviária, carregando apenas uma pequena mochila nas costas. Ele estava determinado a tomar o trem para a cidade da luz, e buscar abrigo em alguma igreja até conseguir se estabelecer por lá.
Quando chegou na cidade luminosa, percebeu que a aventura seria mais complicada do que esperava. Estava confuso e não tinha qualquer ideia de onde ficava o endereço da igreja que a mãe havia lhe passado para a buscar apoio. Tinha muita dificuldade para se comunicar com estranhos. Respirou fundo e seguiu para o norte, lembrando a dica do irmão caçula.
Após conseguir chegar na igreja, depois de mais de duas horas de caminhada debaixo de chuva, esperou terminar a missa da tarde, e se identificou para o pastor, que o acolheu e lhe deu abrigo no quartinho nos fundos da igreja. Também lhe ofereceu um prato de comida e recomendou-lhe que reservasse a primeira semana para repouso.
Naquela mesma noite, fitou na casa do pastor uma linda jovem, filha do religioso que se chamava Eugênia. Imediatamente se apaixonou por ela e, não tardou muito à declarar seu amor pela donzela, que lhe rejeitou com grosseria.
Cada dia mais instável, passou a ter surtos, o quais tentava esconder de todos, mas suas condições pioravam a olhos vistos. Uma certa noite o pastor veio a ele dizendo que havia conversado com o médico do bairro, e esse recomendou que se internasse em um hospital, para que pudesse se recuperar mais rápido.
O fato é que não se tratava de um convite, pois logo em seguida chegaram dois homens fortes que o agarraram a força, e o colocaram amarrado dentro uma ambulância. Aquele momento foi como o divisor de águas na sua vida, e só pensava na promessa que fizera a sua mãe.
O trajeto até o hospício pareceu interminável para Vicente, entretanto, após chegarem a clinica, foi colocado na enfermaria juntamente com os demais pacientes. Pareceu que pela primeira vez em sua vida estava cercado de colegas que o entendiam.
Logo suas habilidades com desenhos chamaram atenção dos psiquiatras, que passaram a fornecer tintas e telas para o paciente pintar. Percebiam que ele se acalmava quando dedicava seu tempo a arte. Também trouxeram livros sobre arte moderna e sobre técnicas de pintura.
Uma tarde, no entanto, foi chamado para receber uma visita. Estranhou muito isso pois não entendia a razão para ele ser procurado. Era seu irmão caçula Theobaldo, sua esposa Joana e o amigo de infância Paulo. Aquilo lhe causou muito desconforto, mas se controlou e os recebeu demonstrando algum afeto e autocontrole.
— Oi Vince! Tudo bem com você meu querido irmão? Tem lido minhas cartas?
— Como assim? Você escreve cartas para mim Theo?
— Caramba! Venho aqui todo final de semana. Você não se lembra das minhas visitas?
— Ah sim! Lembro sim. É que estou meio ocupado e minha memória anda falhando.
— Olha, o Paulo aqui tem uma proposta para você! Lembra do Paulo, não lembra?
— Oi Paulo! Ainda está morando na nossa cidade?
— Oi Vicente, Eu me mudei para a cidade das luzes e agora trabalho com arte. Vi algumas pinturas que você fez aqui no hospital e fiquei encantado. Você gostaria de trabalhar comigo?
— Como assim? Trabalhar onde?
— Eu transformei minha casa em um atelier e lá existe um pequeno quarto que poderíamos dividir. Você aceita?
— Theo, eu posso ir com ele?
— Claro que sim. Seu médico falou que vai fazer bem para sua saúde.
Naquela tarde, Vicente saiu do manicômio e juntou-se ao amigo Paulo, que já era um pintor famoso. Eles passaram a dividir tudo, e com o dinheiro que ganhavam das encomendas, conseguiam se sustentar. Todas as noites iam para o bar da esquina e se embebedavam em divertidos encontros com os boêmios do bairro. Escritores e pintores na maioria.
Na noite do derrame, sozinho no quarto, passou a ver tudo borrado. A silhueta das pessoas cedera espaço para traços grosseiros em sua mente. Obviamente, suas pinturas passaram a retratar tudo como via o mundo. Passou a pintar qualquer coisa que via ao seu redor, e a todos espantava com seus traços incomuns.
Na fatídica noite que perdeu a sua audição, se desesperou com zumbido que lhe tomou a alma. Num surto psicótico, imaginando que havia milhões de abelhas devorando seu cérebro, cortou sua orelha direita e apenas pintou seu autorretrato, quando concluiu, apenas se deitou, sangrando até não mais acordar.
O mundo não estava preparado para entender o Vicente, e sua visão surrealista do mundo. Nunca houve alma capaz de desfrutar dos girassóis que só ele conseguia ver. No fim, sua alma incomum finalmente descansou debaixo daquele céu estrelado que sempre retratava.

This article was updated on 25 maio 2024

Holbein Menezes

Holbein Menezes é carioca, engenheiro, pós-graduado em engenharia econômica e mestre em administração, forjou sua atuação em 40 anos de trabalho na indústria do entretenimento.

Filho de um escritor de romances policiais e uma premiada artista plástica surrealista, sobrinho de um ganhador do Jabuti (1972), descobriu na literatura uma forma de expressão artística e um vínculo com as suas origens familiares.

Dois livros individuais publicados, "As sombras do Alentejo: O vinho e o destino" e "Rumo ao Horizonte: Uma jornada de despedida", além da participação nas coletâneas da editora Metamorfose: "As vidas que ninguém vê" e "Contos do mar".

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